domingo, 19 de agosto de 2012

O Insistente Erro de Calcular o Afeto


Fracasso atrás de fracasso. Agora, no fim, vejo que assim foi minha vida. Eu nunca quis ser um Dom Juan. Não me seria bastante. Amor, paixão, afeto, romance... muito da vida de muitos é gasto para realização de coisas como essas. Mas, se tantos estão buscando, por que é tão difícil encontrar? Todos olham para o mesmo lado, mas tomam caminhos muito diversos. O que me movia era mudar isso, fazendo com que cada um pudesse encontrar seu par da forma mais rápida e, sobretudo, com menos sofrimento. Os livros estão repletos não apenas de lágrimas, como também de sangue vertido por essa causa - veja já o primeiro clássico da literatura ocidental, em que Helena causou uma guerra. A vida dá exemplos menos drásticos, mas permeados de erros - por vezes tão bobos que completamente estúpidos. Eu pretendia fazer cessar esses erros que pareciam para todo lado tão recorrentes. Era assim que eu queria ser mais do que um Dom Juan: mais do que dominar a arte da conquista em benefício próprio, eu almejava que todos tivessem o máximo dessa habilidade e por igual. Como as pessoas se buscam mutuamente, o saber de uma deveria auxiliar o da outra. Tudo me parecia muito direto e elementar. Quase matemático.

E matemático fui ser eu. Entrei para a faculdade no curso de estatística. O plano era colher o máximo de dados, selecionar variáveis e criar um modelo capaz de prever a compatibilidade entre duas pessoas - tudo de antemão e a partir de uma simples descrição delas. Arrumei um emprego de barman em uma boate de segunda, onde eu era tido como um prestador de serviço subalterno - e, por isso, impressionantemente invisível. Foi o lugar ideal para colher os dados de que eu precisava, pois, enquanto mal era notado, pude observar privilegiadamente conquistas bem e malsucedidas. Eu era como uma sombra - sempre ao lado, nunca o centro das atenções. Não deu trabalho para encontrar um padrão. Em alguns meses, eu já tinha um modelo pronto. Na hora de colocá-lo em prática, no entanto, as coisas não foram tão bem. Os pares logo se desfaziam. Percebi que o erro estava no local de onde tirei os dados - afinal, em boates, as pessoas quase nunca estão interessadas em relacionamentos duradouros.

A nova estratégia atrasou notavelmente minha formatura - mas me pareceu óbvio que se eu quisesse algo que durasse, teria que despender muito de meu próprio tempo. Fui colher os dados na própria universidade. A cada horário de aula eu entrava em uma sala diferente. Não me interessavam as aulas em si. Eu ficava era observando as interações entre as pessoas - e eu não era o único. É impressionante ver como as pessoas se buscam nas aulas - sobretudo nas “menos empolgantes” (nada raras). A concentração comumente vai do professor para uma pessoa considerada atraente. Logo vêm as trocas de olhares, testes da reciprocidade da atração. Na sequência, as aproximações. E, assim, os pares vão se formando. Como eu era um igual, não tive dificuldade para observar tudo de perto. Ao longo de semestres, consegui dados massivos para incrementar meu modelo. Ele ficou mais robusto, e eu fui o orgulhoso responsável por encontros muito bem-sucedidos. Vários resultaram, inclusive, em casamentos. Mas, embora maior, a duração desses pares também não foi muito expressiva. Houve mais um problema. Pessoas jovens atraem-se em grande medida pela boa aparência, que o tempo fatalmente leva - e com ela vai a própria união. O bem também se corta pela raiz. Não que todos os pares de faculdade se desfaçam. No entanto, eu precisava fazer meu modelo transcender a aparência como causa de atração.

Pela segunda vez errei pela seleção de uma amostra muito restrita. Estava decidido a não o fazer novamente. Eu não tinha ideia do desafio que isso representava. Tornei-me especialista em notar sem ser notado nos mais diversos ambientes. No começo, eu me escondia atrás de arbustos, pendurado em galhos de árvores ou dentro de bueiros. Porém, o constrangimento de ser descoberto, ainda que não muito frequente, pedia outra estratégia. Passei a encomendar toda sorte de parafernália da ACME, sendo ultrapassado como seu maior cliente apenas pelo Coiote Coió em sua incessante busca pelo Papa-Léguas. Simples binóculos e microfones parabólicos terminaram sendo meus equipamentos preferidos. Percebi que a maioria das conquistas ocorria em locais de descontração. Passei a observá-los sem nunca estar eu mesmo descontraído. E minha tensão aumentava cada vez que o modelo demonstrava uma fragilidade. As conquistas iam progressivamente ficando menos previsíveis. O que funciona em alguns casos, falha em outros. O modelo teve que ir acolhendo regras que expressassem todas essas exceções - tantas que já parecia estranho falar em regras.

Regras estão no domínio da razão, que é um instrumento poderoso, mas não faz outra coisa senão organizar informações que vêm de fora dela. Essas informações, em si mesmas, não me parecem seguir tais regras - salvo a posteriori, quando do esforço para submetê-las ao império racional. A cada vez que eu descobria que meu modelo estava errado, dava um jeito de compatibilizá-lo com a nova informação. Ainda assim, eu sempre era surpreendido por uma nova desconformidade. Fui forçado a concluir que essa imposição da lógica racional ao âmbito afetivo não faz muito sentido. Na verdade, constatei o contrário: um evento contrário às regras parece fazer uma nova chama crepitar no coração - o inusitado é essencial para essa combustão. Além disso, eventos usualmente tidos por erros também têm seu charme. Gaguejar uma frase, desviar o olhar em uma encarada, enrubescer diante de um elogio, por exemplo, denotam fragilidade e parecem erros. Ainda assim, são atos muitas vezes encantadores. Se o correto for o que estiver em conformidade com regras racionalmente postas, o amor vive de erros. Perdi minha vida para perceber isso, gastando-a perseguindo uma quimera. Nunca corri o risco de me tornar um Dom Juan não porque não quisesse, mas por nunca ter sequer me dado uma oportunidade.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Contra? Tô!

Esse texto foi elaborado a pedido de Lia Magalhães para o fanzine Polifonia (www.facebook.com/ZinePolifonia) com a temática "O Encontro". O trabalho visual é de autoria dela.



-          É cem reais.
-          Você vai querer receber antes, né?
-          Claro! Se não nem recebo.
-          Por esse preço rola tudo?
-          Só o básico, mas a gente pode combinar por mais...
-          Vamos ver...
-          Nada disso! Tem que pagar antes pelo mais também!
-          Então vai só o básico mesmo. Toma e tira a roupa devagar!

Esse foi o mais longo diálogo do encontro - se é que pode ser chamado assim. A lascívia dele era tamanha que ela sequer precisou fingir algum interesse. A bem da verdade, esse já havia sido satisfeito quando as notas amassadas lhe foram entregues logo no começo. Agora era só se fazer objeto. E foi exatamente assim. A serventia dela foi análoga à da camisinha. Ele passou a mão pelo corpo da mulher apenas como dando um ajuste para o que realmente importava. No íntimo, queria era causar repugnância, mostrar quem mandava ali (o que já era uma distinção em relação à camisinha - nisso mais bem tratada). Mas esse asco não a assolava havia muito. O coito veio. Durou pouco. No breve período, no entanto, ele se sentia cada vez mais próximo de exercer o que era sua própria vocação. Ela mal notava a diferença. Por fim, gozou, segurando-a por trás com punho firme puxando-lhe os cabelos. “Vadia”, soltou.

Mútua libertação?

Para ela, melhorou. Provavelmente ele ainda iria querer mais tão logo recobrasse sua libido. No entanto, por um momento, ela estava livre do seu encargo - liberdade que logo cessaria junto a uma carreira alva, mas não de todo cândida. E em breve haveria tudo de novo - cínico ciclo servil. Natural. O mundo feminino é uma montanha-russa puxada por seus próprios hormônios. E esse motor bem pode ser a causa de o sexo ser tão caro ao homem e muitas vezes apenas instrumental à mulher (no caso, um caminho ao pó). Afinal, testosterona também aumenta o apetite sexual feminino.

Ele já não estava tão contente. De alguma forma, sentia-se lesado. Não pensava nesses termos, mas lhe afligia passar anos - no raso, centenas de milhares - evoluindo em sentido traidor. Seu genótipo foi formado para sentir grande prazer no sexo, que não cobiça em ciclos, mas a qualquer momento. Agora, com a civilização formada, custa-lhe tanto o que deveria ser simplesmente natural. Uma única performance diária daria R$ 3.000,00 por mês. Seu contracheque não chegava a isso, e eram tantos os outros gastos... O neandertal só precisava de sua força superior, com a qual já nascia.

Em revolta, ele pediu para ser chupado. Ela disse que era bom que ele fosse rápido, pois já estava dando seu tempo. “Só depende de você”, falou-lhe.

Os juristas costumam se referir a contratos como encontros de vontades. Parece até que as vontades estão perdidas por aí, se esbarram, e vão viver felizes para sempre. No entanto, também qualificam essas vontades como contrapostas. O que uma quer é exatamente o oposto do visado pela outra. O comprador quer receber a coisa mediante entrega do dinheiro; o vendedor, receber o dinheiro mediante entrega da coisa. De certa forma, as vontades se opõem. Seria um digladiar, com uma efetivamente contra a outra? Parando para pensar, celebramos contratos o tempo todo: quando compramos uma casa, um carro, um pão; ao ir ao circo, à ópera, ao bordel... é inútil querer ser exaustivo. Na maioria das vezes, as duas partes até parecem felizes (“para sempre”, porém, não é exatamente a intensidade). Os contratos são os principais meios para promover a circulação de riqueza. Assim, quando se vê o resultado cotidiano desses encontros de vontade (a enorme concentração de riqueza - que se expressa opondo dominantes de um lado e dominados de outro) é de se pensar se a putaria não está espalhada pela porra toda.


segunda-feira, 16 de abril de 2012

Modernos em Cômodos

Esse texto foi elaborado a pedido de Lia Magalhães para o fanzine Polifonia (www.facebook.com/ZinePolifonia) com a temática "O Incômodo". O trabalho visual é de autoria dela.


A casa era tão velha quanto o próprio mundo. A variedade dos seus hóspedes também vinha sendo mundial. No entanto, os de que ora se trata só representavam a segunda abrangência. Os únicos velhos aqui eram os que sempre se fazem necessários para o bem-estar das crianças. Estava em curso uma olimpíada de matemática, e havia na casa três grupos de competidores. Eram chineses, indianos e europeus. Cada um dos três era uma equipe com algumas crianças assistidas por um tutor. Todos estavam, a seu modo, concentrados na preparação para a próxima fase da disputa.

No cômodo das crianças chinesas, a situação era tensa. Já havia algum tempo que vinham incorporando em seus estudos os instrumentos eletrônicos que tanto facilitam o trato da matemática. O uso desses aparelhos já fora vedado nas olimpíadas. Não o era mais, de corriqueiros que se tornaram. Não obstante, o tutor dessas crianças insistia em que elas deviam usar o ábaco. Segundo pensava baseado em experiência milenar, o uso prolongado desse instrumento levava a que as contas passassem a ser feitas de cabeça em tempo mínimo. Podia-se dispensar qualquer aparelho. Assim, entendia que esse método era melhor do que o que dependia de instrumentos eletrônicos.

Nesse conflito, o tutor era inflexível. Afinal, concursos figuravam na base da sociedade chinesa por tempo incontável. Seus métodos foram forjados na experiência prática milenar. Não podia haver melhores. Como sempre ocorreu na China, bastaria repetir as práticas consagradas para subjugar qualquer cultura que lhe fosse adversária. Assim determinava o poder celestial. De nada adiantava as crianças mostrarem que os instrumentos eletrônicos faziam muito mais do que simples contas, projetando, inclusive, gráficos em três dimensões. Em meio a tanta insistência, o tutor não era senão chato. E tal se dava em tamanha intensidade que assim foi ficando fisicamente. Achatou-se até não conseguir mais se sustentar e cair. Terminou como um lençol, a que as crianças deram o devido tratamento: dobraram e deixaram encostado na mesa de cabeceira da cama.

Já no cômodo das crianças indianas, o caso era outro - embora não menos litigioso. Cada uma delas havia sido escolhida para formar a equipe por sua notória habilidade com específicas técnicas matemáticas. Para resolver qualquer problema, as diferentes atividades necessárias eram divididas entre os membros do time, que desempenhavam apenas as funções próprias de seu campo de atuação. Mas esse método já se mostrava antiquado pelo contato com crianças inglesas que estudavam em escolas indianas. Os problemas eram muitos. Caricata é a atuação na solução de um problema que concentra muito uma atividade que, embora com menos eficiência, também poderia ser desempenhada por outras crianças do grupo. A espera para que apenas aquela mais bem dotada da técnica necessária execute sua função torna a equipe muito lenta.

O tutor indiano, no entanto, não encontrava guia fácil para sua ação. Já havia algum tempo que observava o bom desempenho das crianças inglesas, a par de elas não executarem apenas as atividades determinadas como próprias suas já na ocasião de seu nascimento. Apesar dessa eficiência, a tradição inglesa não se mostrava facilmente extensível aos indianos. Os amantes de chá nitidamente buscavam apenas explorar os indianos, de modo que só estariam aptos a transferir sua cultura até o necessário para manter a dominação. Além disso, o tutor se via perdido em um emaranhado de distintas tradições que identificava como próprias suas. Várias delas concorriam para justificar de alguma forma aquela rígida divisão de trabalho. Insistindo nessa, o tutor indiano também ficou chato e foi dobrado como um lençol.

Completamente diversa era a situação dos estudantes europeus. Não que não houvesse conflitos - havia constantes. Entretanto, no caso deles, as divergências eram a base do próprio sucesso. Enquanto um disputava com o outro, cada um buscava dar o melhor de si. Disso resultava dinamismo, em que a equipe escapava descrições: estava em contínua mutação. Seu tutor, ao invés de dizer como deviam se comportar, intervinha topicamente para possibilitar que eles mesmos se encaminhassem para o sucesso. Esse era tanto maior quanto maior fosse a base de conhecimentos matemáticos de toda a equipe. Para ampliar essa, buscavam contato com outras culturas.


O intercâmbio entre as crianças asiáticas e as européias já vinha ocorrendo há muito tempo. Pela ausência dos tutores chinês e indiano, intensificou-se. Nesse processo, destacava-se a progressiva absorção de elementos europeus pelas crianças orientais, mudando radicalmente sua própria forma de atuar. Não era apenas uma mera substituição de modos. Aquilo que era próprio dos europeus era incorporado pelos chineses e indianos por processo de transformação que lhes era muito particular. Os resultados eram culturas em grande medida novas.

Com essa renovação cultural, no entanto, o peso do passado fazia-se sentir. Os velhos tutores, dobrados e encostados, exerciam pressão psicológica nefasta. Era como se os novos modos de proceder fossem censurados pelos lençóis. Alguma coisa tinha que ser feita para impedir essa influência.

Havia na casa um cômodo que nunca recebia hóspedes. Ele tinha um móvel muito antigo, todo feito de mogno e ferro. Era dividido em pesados gavetões. Guardava-se nele todo tipo de coisa que não mais apresentava serventia. Portanto, parecia o lugar ideal para acomodar os velhos tutores chinês e indiano. Quando uma coisa incomoda, alguma mudança é demandada para que deixe de ser incômoda. Agora, no entanto, invertem-se os fatores. Em tempo de incessantes mudanças, é a conservação que verdadeiramente está em cômoda.





sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Chronos e Afrodite


A porta da casa se abria. E dessa vez era justamente para ele. Quão incontáveis foram as horas que gastara diante dessa mesma porta apenas para poder vê-la saindo apressada? E quantos dias tiveram frações dessas horas... ou melhor, quantos não tiveram? Por mais que fosse muito tempo, mesmo somados, todos os segundos em que a vira não chegariam ao que estava para acontecer. Sim, pois dessa vez seria ela abrindo a porta para apresentá-lo a sua avó, com quem mora só. Um amigo de amigo havia conseguido o bico de cuidador de idosos, para o tempo em que ela tinha que trabalhar e a avó ficava desamparada. Certamente os dois passariam mais tempo juntos naquele primeiro dia, pois as rotinas deveriam ser explicadas, ainda que basicamente.

O tempo. Coisa curiosa. Como podem todos os relógios marcar o mesmo quando as situações parecem tão distintas? O abrir da porta foi sucedido por uma situação em que o relógio, o mesmo velho companheiro, sequer foi consultado, e a situação em si, de todas, distinta. Não pôde ver seus olhos. Mal a face foi exposta e os cabelos deram as caras em espiral que seguia seu corpo tomando o rumo do outro lado do hall. Poderia dizer que exalava o cheiro do mais belo jardim, se um dia houvesse sido afeto a flores. Não faz mal. Jurava convicto que essa era a fragrância. O ar reverberou um curto “entre, venha cá!” que perdurou insistentemente em sua cabeça. O timbre era aveludado, mas o ritmo cadenciado. Exprimia o doce som decidido de quem dá ordens que são naturalmente seguidas. Deixou o dinheiro para pequenas compras e as mãos se tocaram. A textura não era a típica feminina. Havia pequenos calos e vários sulcos. Não combinava com as leves dimensões.

Quando se deu conta, estava de frente à velha senhora que o olhava apreensiva. Foi quando percebeu que estava tão envolto na forma que não capturou o conteúdo daquilo que lhe pareceu ordens que são naturalmente seguidas. A avó não podia falar. O AVC de que fora vítima também não lhe permitia muitos movimentos. No entanto, havia algo muito comunicativo em seus olhos. Rapidamente e sem pensar, foram criando uma forma de interação que, deixando as limitações à parte, permitia a satisfação das vontades da avó. Tudo era feito por meio de olhares e singelas elevações da sobrancelha. Se a senhora queria algo, olhava para a direção levantando a sobrancelha. Ele ia até o local do olhar até que, em tomando postura adversa à satisfação do desejo, novamente a sobrancelha era erguida. Assim, na tentativa e erro, as opções iam sendo descartadas até que restasse apenas a aspirada. A eficiência do método progrediu tão rapidamente que, por vezes, parecia algo telepático. Em pouco tempo ela chegou mesmo a formular pedidos de leitura de capítulos específicos dos livros que lhe eram caros. Era grande injeção de entusiasmo para ambos. Ao cabo, também a atividade de cuidador de idosos tornou-se amplamente prazerosa.

Ela entrou em casa agitada. Via-se que o trabalho não era grande fonte de prazer. De início, fez que não o notava em casa. Cumprimentou brevemente e se pôs a executar pequenas tarefas domésticas. Estranhamente, todas nos arredores dos outros dois, onde quer que estes estivessem. Percebeu a empatia entre eles e não fez sinal de que gostou. Comentou que suas recomendações não haviam sido seguidas. A velha deu de ombros. Ela insistiu no descumprimento e a velha baixou a cabeça. Temia perder a nova companhia. Apesar de surpreso, ele aproveitou para se orientar melhor sobre as rotinas a seguir. Os dias que se seguiram não foram muito diferentes desse primeiro, embora a sensação de novidade fosse se esvanecendo e sendo substituída por uma áspera atmosfera de ciúme. Nesse ponto, a companhia da avó era muito mais agradável do que a da neta.

Certo dia retornou à casa muito mais cedo. Suas mãos tremiam e ostentava ares de profunda ira. “Você não tem tratado bem a minha avó!” Primeiramente, a velha expressou enorme espanto, mas logo baixou o olhar. “Por que me diz disso?”. “Ela me falou”. Mas ela não fala... - pensou. Os dois ficaram se olhando. Essa era a primeira vez em que a mirava fixa e diretamente. O medo de perder o estimado emprego impediu que percebesse: já havia se afeiçoado muito à avó. Mas quando se deu conta, a neta beijava-o ardentemente. A surpresa foi acompanhada por um forte frio na barriga e grande vertigem. Para não cair, abraçou-a vigorosamente. Mais centrado, retribuiu o beijo de maneira apropriada. Logo percebeu que ela buscava orientar o aperto para pressionar seus seios. Ora um, ora outro, comprimia e relaxava. Ele notou que se erigia e, vexado, tentou disfarçar girando-se levemente. Ela impediu rápida e segura de si, com um entrelaçar de pernas e o encaixe da porção baixa da pélvis no corpo entumecido. O êxtase tomou conta de ambos. As roupas nunca houveram sido obstáculo tão complicado. Ainda assim, de repente, era entrave superado. O contato dos corpos era mágico. Tanto a pele do outro era ansiada avidamente quanto a própria pele era experimentada de forma diferente. Por dentro, parecia haver uma enxurrada. Os pontos corporais mais inusitados iam paulatinamente se transformando em vulcões erógenos. A intensidade era tamanha que os bruscos movimentos iniciais tiveram que dar lugar a suaves carícias. De súbito, foi formado o andrógino platônico. Não foi intencional e o momento sequer percebido. Talvez tenha sido naquele gemido mais forte. Será? Houve momentos de prazer tão intenso que chegavam a sufocar os gemidos. Certo é que a fusão dos corpos era plena, não importando o momento preciso em que se deu. Mesmo na superfície, seu entrelaçamento ao longo dos movimentos constantes tornava difícil identificar se as partes corporais eram de um ou de outro. Tudo parecia único. 

E, até ali, realmente era. Acontece que se seguiram vários outros eventos similares. Embora cada qual tivesse sua identidade, todos remetiam de alguma forma ao primeiro. Ao menos a paixão e o queimor pareciam iguais em intensidade. Ele passou a dormir na casa com as duas pessoas por quem nutriu maior afeto em toda a vida. Houve momentos de ciúme e necessidade de adaptação dos costumes envolvendo as três partes. Mas nada era tumultuado. O que faltava em uma das relações isoladas sobrava em outra, de modo que as situações fluíam com naturalidade para um equilíbrio, embora nunca estático. Sempre surgia um novo elemento a tornar a relação efusiva. Um deles, bastante desagradável. Alguns anos depois, a avó foi sendo acometida de uma enfermidade após outra. Foram tempos dinâmicos, mas tortuosos. Progressivamente foi ficando claro que a união estava muito próxima do fim. Mas foi mera ilusão. A velha partiu, mas não completamente. Seu corpo roto, como é natural para a idade, não mais se fazia presente. No entanto, a serenidade habitual de seu espírito permaneceu inspirando o casal, que mal via a hora para que a passagem do tempo trouxesse sabedoria a ensejar aquela saudosa comunicação telepática.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Mirífico, Miragem


Desconhecer não evita o sofimento. Antes, causa-o pela via da frustração.

A primeira coisa que fez quando chegou em casa foi largar na mesa a pasta com os documentos do trabalho. No entanto, o fardo continuava em suas costas. Supostamente, deveria estar descontraído, pois vinha do bar, em que conversara com amigos de longa data. Em sua cabeça, isso necessariamente lhe daria algum entretenimento. Se pensasse um pouco, no entanto, entenderia porque não é assim. A rotineira reunião começava com uns trinta minutos de atualizações. Tais consistiam apenas em comentar quem está comendo quem e quem está ganhando mais do que quem - e a sensação era sempre a de que tem alguém melhor em cada um dos quesitos. Porém, nunca cogitou que isso desgastasse, uma vez que estava entre amigos, o que é obviamente divertido. Depois vinha o futebol. Aqui os ânimos se exaltavam de verdade. No entanto, não era propriamente uma empolgação. Mais do que comentar as glórias do time pelo qual torce, os maiores esforços eram postos em aporrinhar os outros como os defeitos dos seus times. Durante, até era agradável. Ficava sempre um grupo contra um, dando sensação de coletividade. No entanto, todos eram zoados ao final. O sentimento mais forte era o de ser derrotado por um grupo de amigos. Ainda assim, eram amigos, não havendo motivo para questionar a qualidade da discussão. O resto da noite no bar era gasta com memórias de desventuras. No mais das vezes, situações vexatórias, extremamente desagradáveis quando ocorreram. O dissabor envolvido na ocasião acabava trazendo a amargura de então. Mas os amigos estavam lá para o consolar. Será? Por que permanecia angustiado, então? Nunca ousou indagar. Assim era toda terça-feira, único dia em que não passava todo o tempo fora do trabalho assistindo televisão.

Essa sim era sua companheira. Apenas o noticiário falava de coisas com que não concordava - mas com o próprio noticiário, havia acordo. O que faltava era sentir na pele parte daquela excitação vivida pelas personagens de novelas, filmes e séries. Ele não se dava conta dessa falta, mas ela se fazia presente. Quer dizer, ele achava que estava bem, mas em seu espírito havia um voraz impulso para algo mais. Em um momento em que esse se mostrou um pouco mais evidente, assistiu ao comercial do Mirífico. Na primeira cena, era apenas mais um carro. Mas logo entrou a música, sofisticada, daquelas que dão a impressão de que são ouvidas pelo tipo de gente que se dá bem com todo mundo - o mesmo tipo do qual nunca se vê um exemplo. O carro parou e nele entraram um homem e duas mulheres. Todos, assim como o motorista, muito bem apessoados e com trajes e bolsas para jogar tênis. O carro prosseguiu saindo da cidade, por paisagens maravilhosas, somente inferiores à do clube em que chegaram os tenistas amadores - por certo, notórios amantes. Na próxima cena, ao final da tarde, novamente entraram no carro o motorista, um homem e duas mulheres. Não foram os mesmos, mas tipos menos esportivos. Não por isso menos carismáticos. Tratava-se dos típicos cosmopolitas que ouvem a música que tocava ao fundo. A impressão foi a de que tinham terminado a tarde jogando algo como bocha ou bridge. A paisagem de volta para a cidade era ainda mais bela ao pôr-do-sol. Novamente foi mostrado o interior do carro, agora à noite. Dessa vez, entraram apenas o motorista e uma estonteante mulher. As roupas, sensuais, mas nada vulgares. Por fim, os dois entraram sem pegar a fila de um animado clube noturno, em que cumprimentaram diversas pessoas antes de pegar seus drinques.

Vários minutos se passaram sem que ele prestasse atenção no que a televisão mostrava. Em sua cabeça, fantasiava que desfrutava a companhia da mulher da propaganda depois da diversão na boate. Passado o efeito, deu-se conta de que o Mirífico era justamente o que faltava em sua vida. Não foram necessárias profundas reflexões: em um só dia viveria mais do que vivia em um ano, com companhias e atividades mais diversas e melhores. A empolgação cresceu ainda mais. Foi direto para a internet pesquisar sobre o carro. Torceu o nariz quando viu que seu orçamento não comportava tal luxo. Mas agora já não era uma situação de escolha. Julgava já ter pensado em tudo, e o que importa não é pensar, mas fazer. Estava determinado a ter o carro, como se fosse uma força do destino - embora em sua cabeça não houvesse qualquer opinião sobre pré-determinação ou livre arbítrio (simples conversa mole sem função prática, pensava). O que não lhe ocorria era um meio eficaz de alcançar o novo objetivo. O ultimato foi a próxima reunião no bar. Ele se sentiu muito superior àquilo. Os dias que se seguiram foram de busca insuportável. A dor foi tamanha que se viu aliviado ao cogitar algo que em outras circunstâncias jamais seria uma alternativa. Iria trabalhar mais.

Já tinha a estratégia formulada. Havia um programa na sua companhia que oferecia um significativo bônus para o alcance de metas predeterminadas. Pelos seus cálculos, trabalhando por aproximadamente 14 horas diárias, em três meses poderia comprar a desejada máquina. Até então, sua situação no trabalho fora confortável por incontáveis meses. Ficar sentado ocupando espaço na sala durante 10 horas por dia era tudo o que precisava fazer. Não tinha do que reclamar. E como a maior parte de seu tempo era gasta nessa "atividade", achava natural pensar que a satisfação com o trabalho lhe deixava com a vida ganha. Mas agora sentia opressoramente que não era assim. Ironicamente, havia uma cruel correlação. Antes, julgava que a boa vida de trabalhador consistia justamente em poder não trabalhar. Agora, a vida realmente boa dependia de ter o Mirífico e, para tanto, precisava pegar duro no batente, pois era um obreiro em essência. Conclusão: ora a boa vida de assalariado tem repulsa ao trabalho, ora depende de trabalho árduo. Toda essa inconsistência poderia ser resolvida com alguma reflexão, mas julgava ser essa de todo dispensável. Decerto não levaria ao Mirífico. Para que, então, gastar energia com isso? Nesse aspecto, era resoluto: o importante é fazer, e não pensar. Até então, nada lhe atormentava mais do que ter que se esforçar para enriquecer outrem. Agora, porém, esse tormento é um meio para um fim que lhe é capital. Como um verdadeiro prostituto, sustentou convicto que os fins justificam os meios (apenas em atitude, claro, pois nunca pensou segundo categorias intangíveis como "meio" e "fim").

O plano estava traçado. A execução foi sofrível. Tinha imagens do Mirífico sempre à mão. Pôster na parede, calendário promocional, foto na carteira, proteção de tela e papel de parede do computador: para todos os lados podia aliviar sua tensão mirando a intenção. Aliás, essa era outra estranha correlação da qual ele não se dava conta. Afinal, uma intenção legítima não deveria levar a um tipo de tensão que, ao invés de dever ser aliviada, deveria inspirar coragem? Sequer chegou a formular tal indagação, e precisou muito daqueles alívios. No mais, por si só, o tempo que passava trabalhando já dificultava seu encontro com outras pessoas. O restante da vida social foi desgastado por seu mau humor decorrente do estresse. Mas ele não percebeu o afastamento dos amigos. E não importava: ao fim do semestre, conseguiu economizar o necessário. A compra pareceu-lhe a purgação de todo o sacrifício. Mas o que de fato conquistou foi um objeto que passava mais tempo na garagem de casa e no estacionamento do trabalho. O pior é que nesse último depósito estava longe de ser o único - e a vida não pode brilhar para tanta gente. Ao cabo, a única excitação de que efetivamente podia desfrutar era passar mais rapidamente pelas ruas sem graça de sua cidade. Isso, completamente só. A angústia cresceu e passou a fazer essa estripulia com maiores frequência e intensidade. Aqui não havia compensação. Completamente desesperado, em velocidade que jamais atingira, acertou a parede de concreto de um viaduto.

Esse não foi o fim de sua vida, mas apenas o de uma certa ligação de neurônios desencadeada pela propaganda que sequer chegou a firmar-se, restando longe de sua consciênscia. Sim, sua mente era capaz de perceber o exagero da propaganda e o quão pouco provável era de aquilo se concretizar. Foram os anos de quase bestilização que se seguiram ao período de escola que o ensinaram a ignorar mesmo essa pouco expressiva capacidade intelectual. Ao fim, foi a preguiça que o impediu de mudar a vida, sequente inerte em sua marcha de insatisfação. Ainda, de tudo o que passou despercebido, o mais importante foi um curioso indício de sua tosca condição: a pessoa que é capaz de lhe servir de modelo protagoniza história que mal tem um enredo.

sábado, 1 de maio de 2010

Tom e Jerry


E uma pitada de humor...

Já ouviu falar do cara comum? Jerry é o próprio. Ocupa a mais baixa posição na “cadeia de trabalho”. Sendo um tipo de pau-para-toda-obra, sequer consegue descrever com precisão as características de sua atividade profissional. Sua chefe, Dra. Murphy, é o próprio demônio em saltos altos (os quais usa para compensar sua pequenez em todo o resto). Mas o que seria uma regra sem exceções? Como poderia haver uma pessoa ordinária sem suas peculiaridades? Jerry as tem: ama seu gato, Tom, sobre todas as coisas, um amor seguido de perto por seu vício por simples pão com manteiga.

Junto com a total inépcia para acordar cedo, essa tríade (Murphy, Tom e vício por pão com manteiga) colocou nosso herói do dia-a-dia em maus lençóis uma vez. A confusão começava com o habitual passeio noturno de Tom pela vizinhança. Sempre que chegava, suas patas eram só imundície. Em poucos minutos, a cozinha estava toda enlameada. E como sujeira gera mais sujeira exponencialmente, Jerry tinha que limpar as pegadas de Tom antes de sair para o trabalho. De outro modo, a cozinha seria um verdadeiro pesadelo ao fim do dia. No entanto, como o pobre rapaz já houvera acordado tarde, não tinha muito tempo para a arrumação. Desajeitado, sempre derrubava o pão com manteiga, cuidadosamente preparado antes de dormir, que invariavelmente caía com o lado da manteiga voltado para o chão. O resultado não podia ser outro: Jerry chegava atrasado no trabalho, sem satisfazer seu vício e tendo de aguentar um longo sermão da Dra. Murphy.

Essa bagunça era muito frequente. Um dia, a Dra. Murphy decidiu que era o bastante e deu ao subalterno três chances: o terceiro dia em que chegasse atrasado seria o de sua demissão. Assim, Jerry tinha mais ou menos três dias para arranjar uma solução para um problema com o qual convivia por pelo menos dois anos. Extremamente compenetrado com os fatores envolvidos, percebeu que ficou obrigado a fazer algo por decisão da Dra. Murphy. Era como se fosse uma lei de Murphy. Mmmmmm... veio o mugido da sabedoria: essa é a mesma lei que determina que o pão sempre caia com o lado da manteiga voltado para o chão! Na seqüência, lembrou-se de ter visto os levados moleques da vizinhança “brincando” com Tom. As espirituosas crianças atiravam o bichano para cima de todas as formas imagináveis, mas ele sempre caía em pé. Pronto! A solução para o problema de Jerry era agora uma simples questão de física.

Jerry passou a noite na companhia do amado Tom fazendo experimentos com pães de diferentes tamanhos e distintas quantidades de manteiga. O rito consistia em passar a manteiga sobre o pão, anotar as quantias envolvidas e amarrar o lanche nas costas de Tom. A seguir, suspendia o felino a meio metro do chão. As leis da natureza não mudam porque assim é nossa vontade. Após soltar o gato, a face do pão em que havia manteiga inexoravelmente puxava o “sistema” para baixo. No entanto, as patas de Tom imediatamente faziam o esforço contrário. Quando as devidas medidas foram atingidas, o pequeno físico conseguiu o equilíbrio desejado. Seu grande companheiro agora poderia flutuar girando em torno de seu próprio eixo. Assim podia realizar seus passeios noturnos sem sujar suas patas. No início da manhã, não havia nada para limpar. Bastava desamarrar o pão das costas do gato e comê-lo calmamente antes de ir para o trabalho. Jerry ficou tranquilo por duas ou três semanas, quando a Dra. Murphy encontrou outra coisa para perturbar seu subordinado. Mas ele já não se importa. Uma vez na vida conseguiu resolver um grande problema de forma simples e brilhante. Isso lhe serviu de inspiração para o resto da vida.




Acima: o pão com manteiga e Tom em um espaço cartesiano tridimensional; Abaixo: Tom girando em torno de seu próprio eixo em um espaço cartesiano tridimensional.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Passado Abaixo (ou Biografias de um Sabonete)


Na decisão, escolhe-se a alternativa que aparenta ser a mais apta à satisfação da vontade. Frustrada a expectativa, aumenta-se o valor das alternativas descartadas, que assolam o optante em relação a seu passado.


Mais uma vez era aberta a pesada porta metálica da loja. Era a primeira vez, no entanto, que da rua se podia ver aquele sabonete. Não que houvesse algo especial nele. Pelo contrário, aos seus lados e abaixo, estavam dúzias de outros idênticos. O que nunca ocorrera antes, porém, é não haver nenhum sobre si. Assim, o passar do dia foi ordinário para quase tudo e todos que por lá transitaram, mas não para esse sabonete. Pela primeira vez foi considerado uma opção de compra. Ora, sendo a venda a finalidade que o punha ali, tratava-se de profunda diferença. Mas o que é comum entre as coisas nem sempre lhes atribui a mesma rotina. Nessa loja, muito se podia dizer das distinções entre o cotidiano de cada um dos produtos que, ao fim, estava lá para o mesmo propósito: alienação. Veja o caso do perfume, por exemplo, logo ali tão perto. Do mesmo tipo, no máximo três caixas ficavam juntas. Por conta da variedade, o tempo gasto na escolha dos perfumes era sempre muito maior do que na dos sabonetes. Isso certamente lhes dava mais dignidade. Afinal de contas, são alternativas para uma escolha que tem basicamente a mesma contrapartida: entrega de dinheiro. Pois bem, se o substancial de tudo o que ali se encontra é ser objeto de uma decisão, nada mais natural do que entender como mais digno aquilo em que se deposita mais esforço para a escolha.


Ainda sobre a diferença entre os perfumes e os sabonetes, enquanto diversas pessoas - dos mais variados sexos, idades, e estilos - examinaram cada uma das caixas de perfume vizinhas, aquele sabonete, em particular, foi considerado apenas por duas pessoas. A primeira, uma jovem de quase 40 anos, vestindo terninho muito alinhado ao seu corpo - ainda atraente mesmo para jovens recém saídos da puberdade -, com postura decidida, como a de quem está acostumada a liderar. E foi exatamente essa personalidade que a impediu de levar aquele sabonete. Sua mão seguia uma linha perfeitamente reta na direção do sabonete. Um leve choque com um dos transeuntes, no entanto, impediu que se encontrassem. Como a jovem queria apenas um sabonete qualquer entre os tantos que lá havia, apanhou o que estava na outra ponta da nova linha, igualmente reta, assumida por sua mão. Certamente esse não teria sido o desfecho do encontro se se tratasse de um perfume.


Alguns bons instantes após, porém, um novo encontro ocorreu. Dessa vez, um efetivo. Nesse caso, não era tão fácil descrever o personagem. Não porque era dotado de personalidade muito singular, mas pelo oposto. De tão comum, era difícil identificar traços que o individualizavam. Era apenas um prosaico. Para apanhar o sabonete, sua mão não descreveu qualquer figura conhecida da geometria. Antes, caiu quase inerte sobre a pilha de sabonetes e se arrastou completamente desinteressada por diversos deles. O fechamento dos dedos para apanhar aquele específico sabonete foi tão casuístico que faria dos mais otimistas teóricos do comportamento humano tornar-se um cético sobre a possibilidade de encontrar leis que os antecipe. As demais características do prosaico eram igualmente desprovidas de ânimo. Era um vulgar desinteressante. Ao fim, no entanto, parece ter sido o casamento ideal para o sabonete, igualmente ordinário.


Os dois seguiram longo caminho dentro de um ônibus lotado. O sabonete estava na companhia de alguns outros poucos itens banais que satisfazem apenas necessidades corriqueiras de seus usuários, e que por isso mesmo nem são notados no cotidiano. Essa certamente não teria sido a situação do sabonete se fosse a jovem quem o tivesse pego, ou mesmo se fosse um perfume. No mínimo estaria na companhia de um. Por outro lado, se estivesse com objetos de maior nobreza, mais em xeque estaria seu próprio pedigree. Assim, talvez o sabonete tivesse mais valor para o prosaico do que para a jovem, mesmo desempenhando a mesma função. Nesse caso, o apreço provém de virtude que retira de si mesmo, e não do contexto em que se encontra. Muito conforto espiritual já foi encontrado no que se tornou máxima popular segundo a qual a companhia determina o caráter do acompanhado. Dizer com quem se anda, aqui, possui conotação ambígua. Se os acompanhantes não chegam a ter grande dignidade para transferir ao sabonete, ao menos são a causa de aquela que lhe é intrínseca ser enaltecida.


Chegaram ao seu destino. Era abrigo humilde, como se deveria imaginar. Na verdade, não passava de um barracão. Talvez fosse razoável esperar um pouco mais de distinção, mesmo tendo em conta que era o refúgio do prosaico. Essa expectativa era cabível mesmo desconsiderando qualquer comparação com a situação de a compradora ter sido a jovem, que provavelmente surpreenderia pelo requinte. O interior da edificação, no entanto, era aconchegante. Tratava-se mesmo de um lar. Viviam ali a esposa do prosaico e sua filha, bem como alguém ligado à família por vínculos tão oblíquos que é melhor chamá-lo apenas de aparentado. Era um núcleo familiar bastante pequeno, o que é incomum para esse ambiente sócio-econômico. Nesse ponto, a situação não seria diferente se tivesse sido levado pela jovem. Será mesmo que não? Na casa do prosaico, os habitantes não demonstravam grande ânimo com a vida. Na da jovem, com mais ou com menos pessoas, a situação decerto seria outra.


Após esse breve primeiro encontro, o sabonete foi acostado em um enorme armário do banheiro, único da residência, e por lá permaneceu abandonado por algum tempo. Era um banheiro simples, quase grosseiro. Talvez fosse mais apropriado para um sabão, o que diminuía o já baixo mérito então desfrutado pelo sabonete. Deixando isso de lado, o que estava reservado para ele? Pois, se o ambiente não era muito promissor, o contato com seus usuários poderia ser bastante gratificante. A esposa era extremamente dedicada ao trabalho doméstico para fazer daquela pobre residência um local mais agradável. Disso resultava grande sujeira em seu corpo, sendo a que mais necessitava do sabonete. Para ela, ele poderia representar a purificação que lhe daria o merecimento do usufruto do próprio labor. Na seqüência, a maior glória viria da limpeza do corpo da filha, comungando a purgação da sujeira tangível com a pureza natural da alma da inocente criança. A seguir, vinha o aparentado, a quem o sabonete poderia servir de meio para reforçar seu vínculo com a família. No momento do banho, todos, inclusive o aparentado, usariam o mesmo sabonete. Este seria um dos tão escassos elementos comuns entre eles. Por fim, havia o prosaico. De tão ordinário que era, serviria de descanso ao próprio sabonete: a par de todas as nobres funções que desempenharia, teria a chance de rotineiramente passar por uma experiência comum.


Após alguns dias passados dentro daquele armário, a esposa desempacotou o sabonete e o usou pela primeira vez. De fato, seu corpo estava imundo. O curioso é que, em algumas partes, formava-se espessa camada de sujeira, verdadeira casca. Parecia o começo ideal. Mas o banho logo mostrou a justificativa da sujidade. O sabonete mal fora usado. A esposa tinha verdadeira relação de simbiose com o lixo que se ia juntando na casa. O tormentoso àquela criatura era a limpeza. Mas ao sabonete ainda havia três boas oportunidades. A filha foi a próxima, e prometia ser o verdadeiro começo. Apesar da pouca idade, logo se viu que nada havia de inocente naquela menina. As brincadeiras que fazia durante o banho, nas quais envolvia o sabonete, eram próprias de adultos, e dos não muito comportados. Não havia pureza ali, mas a mais intensa malícia unindo corpo e alma. Faltava ao sabonete qualquer vocação para remover esse tipo de sujeira. O aparentado parecia promissor, mas, agora, exatamente por não pertencer propriamente àquele grupo de degenerados. Acontece que, justamente por isso, antes de usar o sabonete em seu corpo, deixava a água escorrer sobre ele até que boa parte de sua superfície fosse gasta. Para o aparentado, era como se fosse um novo sabonete, apenas seu. O motivo da repulsa era de todo compreensível, mas o desgaste sofrido pelo sabonete não parecia proporcional. Quanto ao prosaico, última esperança, pôde-se perceber em poucos segundos que ali nada havia de ordinário. O homem era obsessivo e metódico. O ritual era tão enervante que em nada podia representar descanso.


Foi nesse ritmo opressor que o sabonete ia passando ralo abaixo. Houve ainda uma ou outra situação que se afigurou, de início, como potencialmente satisfatória. Tais foram os casos das eventuais visitas que o usaram. Essas, no entanto, tratavam o sabonete com nojo, parecendo até que sabiam dos detalhes sórdidos do seu uso cotidiano. Também teve vezes em que foi usado na cozinha, mas apenas para limpar louças, panelas e talheres - finalidade muito aquém de sua própria vocação. Se tivesse sido pego pela jovem, certamente teria destino mais nobre. Se fosse um perfume... aí sim! Mas não foi nada disso, e terminou seus dias quase totalmente dissolvido e anexado artificialmente a outro sabonete, como uma muleta sua.


***


Mais uma vez era aberta a pesada porta metálica da loja. Era a primeira vez, no entanto, que da rua se podia ver aquele sabonete. Não que houvesse algo especial nele. Ao contrário, aos seus lados e abaixo, estavam dúzias de outros idênticos. O que nunca ocorrera, porém, é que não havia nenhum sobre si. E rapidamente surgiu a pessoa que o escolheu, emprestando-lhe especial dignidade. Foi uma jovem de quase 40 anos, vestindo terninho muito alinhado ao seu corpo - ainda atraente mesmo para jovens recém saídos da puberdade -, com postura decidida, como a de quem está acostumada a liderar. E foi expressando essa personalidade que levou aquele sabonete. Sua mão seguia uma linha perfeitamente reta na direção do sabonete e, sem haver qualquer distúrbio, alcançou-o com pulso firme e o colocou junto dos demais itens de higiene que constavam da cesta. Lá, havia desodorante, óleo perfumado, creme hidratante e até um perfume. Nesse universo, o sabonete parecia deslocado e sem valor. Se tivesse sido pego por uma das tantas pessoas comuns que por ele passaram, certamente estaria agora em lugar mais condizente com sua natureza. Haveria ao menos o potencial de apresentar algum destaque.


Foi apenas uma curta caminhada da loja até o apartamento da jovem. Este era bastante amplo e organizado, mas não era um ambiente acolhedor. A jovem morava só, e passava quase todo o tempo fora de casa. Se o sabonete tivesse sido pego por um qualquer, decerto teria toda uma família para servir. Mas essa era realidade muito diversa. Apenas a jovem o usava, sempre tarde da noite e do exato mesmo modo. Como se não bastasse a mesmice, o papel desempenhado pelo sabonete era praticamente irrelevante no procedimento de higiene realizado pela jovem. Ao contrário do sabonete, utilizado de qualquer jeito e com bastante pressa, os óleos e cremes possuíam forma prescrita para serem aplicados e alguns minutos eram gastos com cada um deles. O perfume fornecia o “gran finale” ao ritual. Monotonia e insignificância, portanto, marcaram a existência do sabonete por todo o tempo em que ia passando ralo abaixo, até que foi descartado na lixeira do banheiro junto com dejetos dos mais repugnantes. Não há dúvida de que haveria muito mais valor no sabonete caso tivesse sido pego por um vulgar.